Sou da geração de 60. Muitos adolescentes da minha geração cultivavam a leitura das BD.
A primeira vez que tive contacto com a Banda Desenhada eu teria nessa altura 7 anos de idade. Fiquei encantado com um livro em BD que um meu tio (primo em primeiro grau da minha mãe) tinha levado para casa. O livro se intitulava “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”. Ali começou tudo para mim em termos de BD.
Na altura eu nem pensava que eram figuras desenhadas por pessoas que tinham muita habilidade em desenho e eu absorvia mais as imagens do que o conteúdo escrito. Mandava o meu tio ler a história para mim e até passei a acreditar na veracidade dela e resolvi me armar em Ali Babá e testar o “Abre-te Sésamo" na rocha do Gud em Alto Solarine/Forca. Ficava à frente da rocha e gritava: ABRE-TE SÉSAMO! E ficava ali especado à espera de que alguma coisa acontecesse.
O tempo foi passando e me fui alienando ainda mais com essas histórias e os meus heróis preferidos nessa altura eram o Homem Aranha e o Tarzan. Estava a tal ponto alienado que até fazia os gestos de enviar a teia do Homem Aranha e imitava os gritos de Tarzan e emitia os gritos dos macacos “Tarzan Bundolo”, muitos adolescentes gostavam das histórias do Tarzan e brincávamos nas raras árvores existentes nas redondezas entre Largo da Paz, Alto Miramar e Pracinha do Liceu logo atrás do atual Palácio do Povo.
Foi nessa altura que comecei a prestar atenção aos desenhos, na beleza dos cenários, nos personagens e absorvia vinheta a vinheta cada página. Aí comecei a ter uma vaga noção de todo o trabalho envolvido na criação de uma história aos quadradinhos.
Dentro do género da Selva para além do Tarzan havia o Kalar, Zembla, Tamar e Akim.
Mas também ficava maravilhado com os super heróis como Flash Gordon, Thor, Super Homem, Elektra, Batman, Iron Man, Capitão América e outros.
Também os Westerns faziam parte do meu mundo em Banda Desenhada com Billy the Kid, Buffalo Bill, Kit Carson, Lucky Luke, Bonanza e também histórias de piratas com o Capitão Drake e outros.
O mundo Disney também não ficou de fora. Curtia imenso os personagens Professor Pardal, Zé Carioca, Pateta, Tio Patinhas, enfim, quase todos. Ler esses BDs era riso garantido.
Alguns anos se passaram, eu já ia procurar os meus livros aos quadradinhos e comprava principalmente nas Livrarias do Leão e Belart juntamente com meu irmão Carlos que também era um fervoroso leitor de banda desenhada e trocávamos com outros rapazes (digo rapazes porque na altura as meninas liam mais as fotonovelas e Walt Disney). Os rapazes liam fotonovelas mais como uma forma de traçar uma ponte, uma forma mais de aproximação. Uma das pessoas da zona Alto Solarine com quem mais trocava livros era o Junzim de Nhô Chiquim. este era mais velho e tinha também muitos livros e funcionávamos na base de troca e empréstimos e com ele mantinha muito diálogo. Também havia um outro amigo da zona com quem trocávamos livros, o Nhau, outro fominha por BD.
Recebíamos muitos livros quando o nosso padrasto (ele era imigrante) vinha de férias e nos trazia livros de Portugal. Eu e meu irmão resolvemos colecionar livros e nos tornamos sócios até um dia em que nos desentendemos e brigamos por causa dos livros. Tínhamos duas caixas de cerveja Sagres cheias de livros e após a briga a nossa mãe deu um sumiço neles e assim acabou-se o nosso império.
Nós os leitores ficávamos encantados com os personagens e por vezes discutíamos qual herói era o maior ou qual personagem mais gostávamos.
Muitos de nós já nos conhecíamos, seja por nos termos encontrado no Liceu ou na Escola Técnica EICM. Eu estive nestas duas instituições de ensino EICM e Liceu Gil Eanes nome da instituição nos inícios de 1970 e muitos dos leitores eu já conhecia pois costumávamos comentar e trocar livros. Falando nisso, me veio à memória algo interessante ocorrido nessa época; Ia a caminho da Escola Técnica por volta das 7 e qualquer coisa da manhã, tinha eu na altura 16 anos e à minha frente iam três estudantes também da mesma escola e discutiam sobre a veracidade da existência do Tio Patinhas e do Donald. Um deles perguntou ao outro: então queres dizer que o Tio Patinhas não existe? Nem o Donald? Sorri ao de leve porque essa conversa entre os estudantes me fez fazer uma viagem no tempo, no período em que eu também acreditava na existência física desses personagens e que nem pensava neles em termos de ficção. Nesse momento entendi o valor de ser-se mais velho, eu já tinha ultrapassado aquela fase.
Os lugares onde habitualmente comprávamos livros eram na Papelaria e Livraria do Leão situada na altura na rua Senador Vera-Cruz e na Livraria Belarte também situada nessa mesma rua sendo a primeira no início da rua para quem se encontra na rua de Lisboa e a última no final dessa mesma rua perto da Galeria Nhô Djunga. Mas também comprávamos na Papelaria do Toi Pombinha ao lado da Câmara Municipal na atual rua António Aurélio Gonçalves.
Tínhamos até um ponto que de forma natural foi-se convertendo num ponto de encontro dos fãs de BD. Esse local era à frente do Mercado Municipal de Mindelo onde a malta se amontoava ávida de leitura.
Uma das razões que levavam o pessoal a se encontrar junto ao Mercado Municipal era a existência de um quiosque dirigido por uma senhora de nome Judite (morava na minha zona) que vendia livros de histórias aos quadradinhos usados, pessoas que liam e vendiam a um preço normalmente inferior ao preço da compra inicial ou será que foi o contrário: os leitores passaram a encontrar-se à frente do Mercado Municipal e a D.ª Judite que tinha o quiosque onde vendia outros artigos resolveu aproveitar aquela dinâmica dos leitores de BD para comprar e vender livros em segunda mão. Bem, não importa! O importante é que havia um lugar onde religiosamente o pessoal se encontrava para troca e compra de livros.
Essa dinâmica despertou em muitos jovens na altura o desejo de criar Banda Desenhada e lá em casa o primeiro a fazer páginas em BD foi o meu irmão Carlos. Ele desenhava muito bem e a sua perícia me inspirou e eu também lá fui ensaiando algumas páginas. No Liceu haviam outros rapazes que também cultivavam essa tendência.
Ao longo dos anos fui encontrando com pessoas que tinham também um grande amor pela Banda Desenhada e que também passaram por esta experiência de criar histórias em quadrinhos, é o caso do meu primo Emanuel Ribeiro e do meu amigo José Fonseca (Zé Leopardo) com quem fiz a minha primeira exposição de desenhos e pinturas em 1997 no Centro Cultural de Mindelo, nessa exposição a técnica predominante era tinta da china sobre papel.
Muitos de nós da geração de 60 passamos por essa experiência das histórias em quadrinhos. Na época não tínhamos Internet nem Vídeo Jogos. Filmes para a nossa idade só passavam em alguns domingos e feriados nas duas Salas de Cinema existentes: Cine Eden Park e Cine Miramar e algumas crianças/adolescentes só iam ao cinema no dia de Natal, 1 de Janeiro ou Domingo de Páscoa. Enfim, outra época.